quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

SOBRE O CONCEITO DE FENÔMENO NA
CRÍTICA DA RAZÃO PURA

Marcos Roberto Damásio da Silva[1]


RESUMO

O presente artigo prender-se-á ao conceito de fenômeno (Erscheinung) na obra Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft), do filósofo alemão Immanuel Kant mais precisamente na primeira parte da obra denominada “Estética Transcendental”. Dado que o termo fenômeno foi usado de diversas formas durante toda tradição filosófica, desde os filósofos gregos (phainomenon) passando pelos medievais até ganhar uma conotação kantiana a partir do século XVIII. Torna-se importante clarificar como esse gigante da filosofia moderna o usou em sua célebre obra, e, de forma muito peculiar, enxertou ricamente em sua filosofia transcendental.
O artigo utilizará duas traduções da Crítica da Razão Pura, uma brasileira a da Coleção os Pensadores, (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Moosburger. Editora Nova Cultural, Coleção Os Pensadores. 1996.) e uma portuguesa, da Fundação Calouste Gulbenkian, (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 2 ed. Lisboa: Fundação Clouste Gulbenkian, 1989. Trad. De Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão do original alemão “Kritik Der Reinen Vernunft”,).
[2]

Palavras-chave: Fenômeno, Coisa-em-si, Metafísica, Filosofia Transcendental.

INTRODUÇÃO

A publicação da Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft) em 1781 foi destinada a filósofos experientes e atuantes no estudo da filosofia. Sua leitura demasiada pesada e, sobretudo, extremamente complexa, na época da publicação, causou certa indigestão a alguns que iniciaram sua leitura. É sabido que quando Kant terminou de escrever a Crítica, deu a um amigo da Universidade de Königsberg chamado Herz para que lesse, o mesmo o devolveu em mãos, fazendo apenas a surpreendente afirmação “que receava a insanidade se prosseguisse”
[3].
Etimologicamente o termo phainomenon deriva do verbo phainestai “mostrar-se”, é o infinitivo de phaino
[4] (forma média), “por à luz”, “trazer à luz do dia”, que provem da raiz pha-, donde o termo phôs[5] “luz”, “claridade”, ou seja, aquilo no qual alguma coisa se torna manifesto, visível. Um outro verbo que se relaciona com phainomenon é phainomai faino,mai, “aparecer” o que é evidente, “evidentemente”, “manifestamente”. Tem como cognato o advérbio phanerôs ou phanerós, “visível”, “manifesto”. Portanto, phainomenon significa: aquilo que se mostra à luz do dia, algo que pode ser evidentemente visto e observável a olho nu.
O conceito de fenômeno (Erscheinung) é a porta de entrada para a compreensão da “filosofia Transcendental”, como também a chave que fecha as portas do conhecimento objetivo a uma Metafísica Dogmática tão difundida pela Tradição e veementemente atacada pelos empiristas como Locke, Berkeley e principalmente Hume. Kant define fenômeno como: “o objeto indeterminado de uma intuição empírica”
[6] Kant entendia bem o campo em que os empiristas criticavam os metafísicos, isto é, o conhecimento da coisas-em-si. Esse pensamento levou toda tradição a inúmeras contradições, logo seu “salto para não cair” é o abandono da pretensa afirmação que é possível conhecer as coisas tais como elas são em si. Para Kant, só podemos cogitá-las enquanto possibilidade de serem pensadas sem incorrer em contradições.
Nessa esfera tanto a sensibilidade como o entendimento trabalham em conjunto promovendo sínteses em busca da obtenção do conhecimento objetivo. A sensibilidade que se entende pela faculdade das intuições dá conta dos objetos sensíveis, a posteriori (aisthéta). O entendimento, a faculdade dos conceitos, responde pelos elementos inteligíveis (noéta) que só se dão na estrutura noética do sujeito, sendo a priori. Essa distinção aproxima Kant dos antigos gregos no que concerne ao conhecimento dos aisthéta kaì noéta.

Intuição pura: Espaço e Tempo

O conceito de intuição[1] (Anschauung), – ao contrário de Descartes e Espinosa que o entende conforme o pensamento platônico, ou seja, é entendido como um “conhecimento imediato do domínio inteligível” – é para Kant pensado dentro da tradição aristotélica, isto é, Kant entende a intuição situada à nível da sensibilidade, ou seja, é “uma visão direta e imediata de um objeto”[2]
A sensibilidade, portanto, exerce uma função rigorosa em toda a teoria kantiana do conhecimento, principalmente na Estética Transcendental, onde Kant define sensibilidade como uma faculdade das intuições. A sensibilidade responde por dois elementos constitutivos do conhecimento, a saber: matéria e forma. A matéria chega ao sujeito através dos objetos exteriores, já a forma do conhecimento manifesta “a ordem em que essas sensações são colocadas”[3].
O espaço e o tempo, dentro da concepção kantiana, não podem ser aquisições da experiência. Essas formas puras da sensibilidade ou apenas intuições puras, são para Kant, formas ordenadoras de todas as coisas que são conhecidas. Com isso Kant quer dizer que sem espaço e tempo nada existiria, objetos não poderiam ser conhecidos pelo sujeito cognoscitivo, logo, espaço e tempo constituem o “elemento formal da sensibilidade”.
Os conceitos de espaço e de tempo não podem ser pensados como noções já dadas em si mesmas, pois, segundo Kant, não são conceitos empíricos extraídos da experiência, pelo contrário, toda experiência provêm das formas puras da sensibilidade. O papel do espaço e do tempo na estética transcendental é mostrar-se presente no espírito (Gemüt)[4] anteriormente a toda e qualquer experiência possível, isto leva a afirmação que toda experiência pressupõe o espaço e o tempo.
À estética transcendental Kant procurar responder como são possíveis as “formas puras a priori da sensibilidade” (intuições do espaço e do tempo), viabilizando dessa forma as intuições sensíveis, isto é, a recepção da matéria do conhecimento. Portanto, a sensibilidade é uma faculdade inalienável do sujeito dentro do processo cognitivo. Sem essa faculdade, diria Kant, seria impossível admitir sínteses, logo, nenhum conhecimento (sem a sensibilidade) poderia ser objetivado, isto é, conhecido indubitavelmente.



Tomados conjuntamente [tempo e espaço]
são formas puras de toda a intuição sensível, possibilitando assim proposições
sintéticas a priori. Mas estas fontes de conhecimento a priori determinam os
seus limites precisamente por isso (por serem simples condições da
sensibilidade); é que eles dirigem-se somente aos objetos enquanto são
considerados como fenómenos, mas não representam coisa em si. Só os fenómenos
constituem o campo da sua validade; saindo desse campo já não se pode fazer uso
objetivo dessas fontes.
[5]


A noção de causalidade também aparece na obra de Kant. É da noção de causalidade que Kant parte para uma refutação à filosofia cética de David Hume. O filósofo britânico, por sua vez reputa a noção de causa e efeito como mero hábito, mera fantasia. Tal noção é reafirmada por Kant que a admite como o âmbito dos fenômenos, ou seja, a causalidade é uma forma a priori do intelecto onde atuam os fenômenos. O intelecto não tem acesso aos fenômenos se não for via causalidade:



então o princípio de
causalidade e, conseqüentemente, o mecanismo natural da determinação das coisas,
deveria estender-se absolutamente a todas as coisas em geral, consideradas como
causa eficiente
[6]


Kant foi taxativo em considerar que foi Hume quem o “despertou de do sono dogmático”. A crítica de Hume fere danosamente a vitalidade da metafísica, como exposta em Descartes, Leibniz e Wolff. Hume afirmava que fora a imaginação e não a razão responsável pelo princípio de causalidade, ou seja, não há nenhuma necessariedade entre dos eventos. Em outras palavras, o procedimento de Hume em relação a mente humana, assemelha-se ao do bispo Berkeley em relação a matéria, uma destruição. Essa crítica de Hume não atira apenas contra a metafísica, mas também contra a ciência (problema da indução), e contra a religião (o problema da idéia de Deus e da alma).
A investigação kantiana dos “princípios apriorísticos da sensibilidade”, mostra todo interesse pelo problema do conhecimento em sua época. Kant está extremamente preocupado com o modo de conhecer, mas não o conhecimento do mero objeto, e sim, como esse conhecimento do objeto sensível (por isso “estética”) pode ser dado a priori (transcendental). Com a objeção acerca dos conhecimentos matemáticos e físicos, Kant se pergunta por que a metafísica também não fornece o mesmo grau de confiabilidade que tais conhecimentos? Ou seja, “como é possível a metafísica enquanto ciência?”[7]. É a partir desse questionamento que Kant formula a noção de juízo sintético a priori que, segundo Kant, fornece tanto universalidade quanto necessariedade, sem deixar de progredir o conhecimento, dando-lhe caráter cientifico.



Tem sido afirmado, e com
razão, que é o modelo da ciência da natureza que se encontra na base da
filosofia de Kant. Esta não seria mais do que a filosofia considerada possível
para o mestre de Königsberg em época impregnada de fervor científico. Na
verdade, todo o pensamento kantiano tem presente essa ciência exacta, emergente
na Idade Moderna e que se vai impondo, progressivamente, a todos os domínios do
real.
[8]


A filosofia que em Kant encontra-se amadurecida, dado a um rigor científico, já vinha agigantando-se desde o cogito cartesiano que se mostrava a maneira dos matemáticos, mantendo em seu arcabouço os princípios de identidade e de não-contradição, mas com o elemento Deus como fundamento. Essa ascensão culmina na abordagem cética e empirista do filósofo inglês David Hume. Da crítica de Hume, Kant conduz sua filosofia à noção mais formal de fenômeno. Para Kant a noção de fenômeno como “objeto formal do conhecimento”:



“Agora com Hume a
relação de causalidade, longe de se nos impor por um princípio a priori, tem por
base um ‘hábito’ criado em nós pela repetição do mesmo processo
psicológico”
[9]


Kant reserva à Hume sua resposta, que vem pela noção de representação. Ora, se o fenômeno se mostra tal como ela aparece para o sujeito, é obvio que existem também objetos “em si”, isto é, são de uma forma tal que as condições subjetivas do sujeito que são necessárias à percepção não os afetam. Logo, a representação é uma “segunda apresentação”, dada também na sensibilidade. Kant , assim como a Tradição, não nega a coisa-em-si, mas apenas nega uma “intuição intelectual”. O sujeito conhecendo apenas as representações permanece, portanto, uma conexão das representações com o entendimento.

O fenômeno

Numa tentativa de situar o pensamento de Kant, vale salientar que Kant está travando um confronto tanto com os dogmáticos como também os céticos encabeçados pelo filosofo inglês David Hume. Isso fica claro quando percebe-se que para os dogmáticos (expoentes de uma metafísica ingênua, segundo Kant), a noção de “fenômeno” não é mais que “estados de consciência”. Kant se oporá a essa perspectiva afirmando que os fenômenos são sempre representações de objetos dados:



Daí não podemos ter
conhecimentos de nenhum objeto, enquanto coisa em si, mas tão somente como
objetos da intuição sensível, ou seja, como fenômeno.
[10]


A intuição exercerá um papel fundamental para a noção de fenômeno na Crítica da Razão Pura. Kant admitirá duas formas de intuição, a empírica e a pura. Toda intuição pressupõe a existência de objetos dados de forma prévia, logo, objetos ainda indeterminados, carentes de conceituações, dados à sensibilidade ainda como representações, ou seja, como as coisas aparecem ao sujeito. O “objeto indeterminado”, como definido por Kant no início da Estética Transcendental, chama-se fenômeno, que ainda não é entendido como um conhecimento objetivo completo, pois o que Kant chama de conhecimento é a junção de intuição mais conceito. Tanto a intuição como o conceito são elementos primordiais para obtenção do conhecimento, pela intuição algo é dado como fenômeno, já o conceito é aplicado ao fenômeno.
O escopo que o intelecto admite para conhecer objetivamente é a sensação. Sensação é toda e qualquer impressão produzida por um objeto na sensibilidade. Este objeto por meio da sensação se relaciona com a intuição, isto é, portanto, chamado de intuição empírica. A intuição empírica detém o objeto que foi dado a sensação, logo, é esse objeto que Kant chama de fenômeno.
O Conhecimento para Kant se desloca da intuição[11] do sujeito (faculdade do conhecimento a priori) para o fenômeno do objeto (representação espaço/temporal), que por sua vez, divide-se em matéria e forma. A matéria do fenômeno é o conteúdo da sensação, é sempre dado a posteriori. Já a forma do fenômeno (espaço e tempo) encontra-se sempre a priori no espírito (formas puras) e é o que dá “forma” à matéria do fenômeno. O fenômeno é o limite do conhecimento objetivo, e que encontra sua limitação na estrutura do conhecimento racional. Logo o conhecimento só é puro quando parte da razão do sujeito. O conhecimento objetivo encontra seu limite no limiar da representação fenomenal.



Dou o nome de matéria ao
que no fenómeno corresponde a sensação; ao que, porém, possibilita que o diverso
do fenómeno possa ser ordenado segundo determinadas relações, dou o nome de
forma do fenémeno.
[12]


A noção de fenômeno em Kant é estendida durante toda sua carreira de filósofo profissional:



Em sua primeira obra, FV
(1747), Kant usa convencionalmente fenômeno no sentido de uma manifestação
externa de uma força invisível, como na proposição “o movimento é apenas o
fenômeno externo do estado do corpo” (FV §3)
[13]


Dessa noção mais simplória, e aqui mais próxima da noção de phainomenon dos antigos filósofos gregos, Kant incide na perspectiva de fenômeno como “objetos da sensibilidade”[14] isso inclui tanto o sensível como o puro. Na noção de fenômeno na obra que está sendo analisada aqui, a saber: a Crítica da Razão pura, é oposta a noção de “noumenon”, a velha duplicidade entre mundo inteligível e mundo sensível própria do pensamento metafísico e sustentada por Kant.
Para Kant os fenômenos são organizados no espaço e no tempo, segundo os conceitos a priori, isto é, a estrutura noética que é anterior aos fenômenos reconhece e classifica tudo que é dado a intuição. Nesse ponto, vale ressaltar, que os fenômenos não devem ser confundidos com “idéias”, mas são imagens. Kant parece incansável em sua exposição transcendental, e vai mais além em sua Crítica. O fenômeno é a substrução do objeto tomado como noumenon, em outras palavras o fenômeno é a “diminuição da coisa em si”.
Ao contrário do que se tem ouvido superficialmente, não foi o “abandono das conclusões metafísicas” que conduziram Kant a criticar a metafísica como exposta na Tradição, mas sim, a fraqueza dos argumentos em que se assentavam. Com tudo, o erro funesto dos metafísicos dogmáticos, que ainda sustentavam uma metafísica tradicional, arraigada nas questões apenas abstratas, apontado por Kant, foi negligenciar veementemente um critério seguro, isto é, faltou aos dogmáticos o Kant chamou de “caminho seguro de uma ciência”, eles não buscaram validar a metafísica com segurança, pois para Kant, não podia ser em vão que a razão exercesse preponderância sobre todo conhecimento, tal era a confiança do filósofo de Koenigsberg na razão.



Portanto, a primeira e
mais importante tarefa da filosofia consistirá em extirpar de uma vez para
sempre a essa dialética qualquer influência nefasta, estancando a fonte dos
erros.
[15


Pode-se afirmar que a metafísica instaurada por Kant além de “salvar” a própria concepção de metafísica, também define três esferas de atuação do pensamento enquanto possibilidade de conhecimento. Em primeiro lugar, a metafísica atua fundamentando toda possibilidade anterior ao conhecimento científico, isto é, “sintético a priori”. Na física se responde pelo campo da experimentação empírica, atestando o conhecimento objetivo. Por ultimo, com tudo isso, Kant ainda mantém o espaço da fé, isto é, as possibilidades de se pensar Deus, a alma e a liberdade.

CONCLUSÃO

Com a dicotomia entre fenômeno e coisa-em-si, Kant supera os empiristas e os metafísicos, definindo seus campos de atuações. Para além do fenômeno, afirma Kant, a razão não pode conhecer objetivamente nada, a possibilidade do conhecimento fenomenal só pode ocorrer dentro dos limites estabelecidos pelas formas puras da sensibilidade, chamados por ele de tempo e espaço. Logo não se pode conhecer a realidade em si, como ela é em “essência”[16], como afirmava a Tradição, mas apenas representada pelos fenômenos e organizada pelo sujeito cognoscente segundo as formas a priori da sensibilidade.
Num sentido mais amplo, os objetos são dados à sensibilidade, e por isso, denominados de fenômenos. Os fenômenos são condições espaço-temporal, e devem ser compreendido como “aparições” de coisas que possuem existência em si mesma, mas que não estão conformadas ao espaço e ao tempo e que não são conhecidas, mas, não podem ser negadas. O espaço e o tempo fornecem ao fenômeno todas as condições necessárias para serem efetuados. Logo o fenômeno é para Kant tudo aquilo que é intuído no espaço e no tempo, isto é, todos os objetos de uma experiência possível.
Da análise da estética transcendental, isto é, da sua “filosofia transcendental”, conclui-se que o fenômeno é aquilo tal como se mostra ao espírito, e, somente ele pode ser conhecido seguramente. Kant também fecha as portas para qualquer conhecimento que não esteja fundamentado na intuição, e introduz fundamentalmente a base de toda ciência que deseje progredir no ramo do conhecimento objetivo. Nenhuma outra ciência aproximou o homem e nem aproximará da coisa em si, tudo que é dado a conhecer pelo homem, é relativo a ele próprio, pois nenhuma coisa em si pode ser dada ao homem, chagando com isso a dura verdade que somente os fenômenos podem ser atingidos:



Assim, pela
sensibilidade, não conhecemos apenas confusamente as coisas em si, porque não a
conhecemos mesmo de modo algum; e se abstraímos da nossas constituição
subjetiva, não encontraremos nem poderemos em nenhuma parte o objeto
representado com as qualidades que lhe conferiu a intuição sensível, porquanto é
essa mesma constituição subjetiva que determina a forma do objeto enquanto
fenômeno.
[17]


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Moosburger. São Paulo: Editora Nova Cultural, Coleção Os Pensadores. 1996.

_____, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 2 ed. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Clouste Gulbenkian, 1989.

HUME, David. Investigação Sobre o Entendimento Humano. São Paulo: Editora Abril Cultural, Coleção os Pensadores, 1980.

Coenen, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. 2 ed. São Paulo. Vida Nova. 2002. Trad Gordon Chown. 2 Vol. 2773 p.

VINE, W. E. & UNGER, Merril F. & WHITE, William Jr. Dicionário Vine: O Significado Exegético e Expositivo das Palavras do Antigo e do Novo Testamento. Rio de Janeiro. CPAD. 1995. Trad. Luís Aron de Macedo. 1115 p.

Chamberlain, Willian Douglas. Gramática Exegética do Grego Neo-Testamentário. 1 ed. São Paulo. Casa Editora Presbiteriana. 1989. Trad Waldyr Carvalho Luz. 261 p.

CHANTRAENE, Pierre. Doctionnaire Étymologique da la Langue Grecque: Histoire des Mots. Paris, Éditions Klincksieck, 1968. 1368 p.

LEBRUM, Gérard. Sobre Kant. 2 ed. Tradução de José Oscar A. Morais; Maria Regina A. C. da Rocha; Rubens Rodrigues T. Filho. São Paulo: Editora Iluminuras. 2001. 110 p.

CAYGILL, Howard. Dicionário de Kant. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar. 2000. 353 p.

PASCAL, Georges. Compreender Kant. 3 ed. Tradução de Raimundo Vier. Petrópoles-RJ: Editora Vozes. 2007. 206 p.


NOTAS


[1] Seu correlato latino é intueri, que significa “ver”. Na filosofia de Kant uma antecipação da idéia.
[2] PASCAL, Georges. Compreender Kant, p.49.
[3] KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Coleção Os Pensadores. p. 9.
[4] “Mente”, “espírito”, “ânimo”.
[5] Ibidem. p. 28.
[6] Ibidem, p. 26.
[7] KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Clouste Gulbenkian, p. 51.
[8] Ibidem. p. VIII.
[9] Ibidem. p. IX.
[10] Ibidem. p. 25.
[11] Não pode haver intuição sem que um objeto seja dado, logo, só a sensibilidade pode fornecer intuições.
[12] Ibidem. p. 62.
[13] CAYGILL, Howard, Dicionário de Kant, p. 149.
[14] Ibid. p. 149.
[15] Ibidem. p. 28.
[16] Essência (em alemão: Wesen), o termo é aqui usado pelo autor do artigo no sentido de eidos e não de ousía, distinto de “acidentes” e “substância”.
[17] Ibidem. p. 80.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

ARTHUR SCHOPENHAUER
O Mundo como vontade de Representação

[1] Marcos Roberto Damásio

“A arte é uma flor nascida no caminho da nossa vida, e que se desenvolve para suavizá-la” (Arthur Schopenhauer)

Filósofo alemão do século XIX nascido em 1788 na cidade de Danzig na Prússia[2], Arthur Schopenhauer, faz parte da corrente filosófica irracionalista, repesentada tanto por Schopenhauer como por Nietzsche. É também um filósofo do pessimismo em relação a sua visão do mundo. Estudou nas universidades alemãs de Göttingen e Jena. Após um grande período de descrédito e decepção na Europa, sua filosofia começou a ganhar adeptos e logo foi traduzida para vários idiomas. Sua obra principal é O mundo como vontade e representação publicade em 1819, e que será objeto de análise nesse trabalho.

É a partir da filosofia de Imannuel Kant (1724-1804) que se pontua o pensamento do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), mais precisamente dentro da dicotomia entre numenon (coisa-em-si) e fenômenon (o que aparece ao sujeito cognoscente). É a partir dessa divisão kantiana do conhecimento que nasce os conceitos schopenhaueanos de Vontade e Representação, centrais em sua filosofia. Para Schopenhauer o mundo sentido em suas percepções não passa de representações, aos moldes kantianos, síntese entre realidade exterior e consciência humana:

Por mais maciço e imenso que seja este mundo, sua existência depende, em qualquer momento, apenas de um fio único e delgadíssimo: a consciência em que aparece.[3]

Em sua obra mais importante, “O Mundo como Vontade e Representação”, (Die Welt als Wille and Vorstellung) Schopenhauer afirma que o homem só pode conhecer do mundo o que lhe é dado à percepção como representação (Vorstellung), ou seja, como elas são percebidas no espaço e tempo. Daí a critica a Hegel pela idéia do “saber absoluto”. Assim se postula em sua obra que nenhum objeto do conhecimento tem uma realidade em si, logo, sendo apenas resultados das condições gerais do espaço, do tempo e da causalidade:

Com efeito, o que Kant diz é essencialmente o seguinte: ‘Tempo, espaço e causalidade não são determinações da coisa-em-si, mas pertencem unicamente a seu fenômeno, ma medida em que não passa de formas de conhecimento[4]

No início do livro III de O Mundo como Vontade e Representação Schopenhauer aproxima as filosofias de Platão e Kant tentando mostrar suas semelhanças. Mas não só isso, mas também assume a filosofia platônica no que diz respeito à esfera noética do conhecimento, aos objetos como meras aparências das verdades inteligíveis. A afirmação de que o mundo é representação é uma reformulação da teoria platônica do mundo sensível. Também com relação a Kant, afirma conhecer os fenômenos que nos é dado os objetos, mas não em si mesmos.

Assim concordaremos com Platão, ao conceder esta existência propriamente dita somente às idéias, reconhecendo, por outro lado, às coisas no espaço e no tempo, este mundo real para o indivíduo, apenas uma existência aparente, ilusória[5]

No centro de sua filosofia, estão dois conceitos fundamentais e que não aleatoriamente compõem o título da obra, ou seja, “vontade” e “representação”. Vontade, irracionalidade e pessimismo sintetizam de forma objetiva a filosofia de um pensador “sem público” o qual herdou de Friedrich Nietzsche o epíteto de “o cavaleiro solitário”.

Assim como Nietzsche, Schopenhauer não obteve muito sucesso como professor. Mesmo vivendo em um período muito rico da história da filosofia moderna não conseguiu despontar uma filosofia de caráter referencial em seu tempo e não permaneceu dentro da tradição filosófica que nasce com Platão e tem seu momento áureo com Kant. Chegou a disputar cadeiras com Hegel na Universidade de Berlim, mas isso foi um fracasso pra sua permanência em Berlim, ao final do mesmo semestre desistiu da carreira de professor na Universidade de Berlim.

Schopenhauer é tido por alguns filósofos como o ultimo dos pensadores do idealismo alemão, onde entre alguns situam-se Kant, Fichte, Schelling, Schleiermacher e Hegel, e tem seu início com Kant, marcando uma transição para uma metafísica imanente com vias a psicanálise. Após o descrédito com a filosofia hegeliana na Alemanha, Schopenhauer passou a influencia muitos pensadores após sua morte, tais como Freud, Nietzsche, Hittgenstein e diversos artistas e escritores. O próprio Freud tanto na “Interpretação dos Sonhos”(1898 e 1899) como nos “Três ensaios sobre a sexualidade” (1905) mostra uma forte influência Schopenhaueana, derivando da “Metafísica do Amor Sexual” boa parte de sua psicanálise.

A representação é como o mundo aparece ao homem, é o que Kant chama de fenômeno. Já a vontade, também em comparação com Kant, é o mundo vivido (mas não visto), as vivências do ser humano, a própria coisa-em-si. No entanto, o mundo é tanto fenômeno como coisa-em-si (usando uma nomenclatura kantiana). Nesse ponto Schopenhauer começa a se afastar de Kant, posto que Kant nega qualquer acesso a coisa-em-se, Schopenhauer parte dele como parte essencial de sua filosofia:

Schopenhauer, ao contrário, [de Kant] pretendeu abordar a própria coisa-em-si. Essa coisa-em-si, raiz metafísica de toda realidade, seria a vontade[6]

A representação é composta por dois objetos importante, a saber, o sujeito e o objeto da representação. O sujeito é o que tudo conhece e, já o objeto é o que pode ser conhecido dentro do espaço e tempo (erscheinung). O sujeito, para Schopenhauer, estaria fora do tempo, sendo uno, indiviso, em todos os seres humanos capazes de representação. Caso o sujeito deixe de existir, deixa de existir com ele o mundo representado. O homem, como representação é um fenômeno, assim como o mundo. Ambos são vontade.

A Vontade é a “coisa-em-si” que Kant não admite nenhuma possibilidade de conhecimento objetivo. A afirmação da vida é a manifestação da Vontade. É também o “princípio fundamental da natureza”. Antes de tudo vontade é vontade de viver. Tanto o mundo quanto o homem são os reveladores da Vontade, mas sendo o homem o principal meio para essa revelação, visto que o homem é a forma mais visível e mais perfeita de sua manifestação. A vontade, essa coisa-em-si, no entanto, propaga o “querer viver”, o “querer realizar-se” independentemente das categorias de tempo e espaço. A Vontade não está submetida a as leis da razão, é totalmente independente da representação, ou seja, não depende do “princípio da razão suficiente”.

O princípio da razão suficiente é um conceito schopenhaueano que corresponde ao espaço, tempo e causalidade (que é responsável pela busca da origem dos fenômenos), entendido a partir de uma interpretação kantiana, é o que Kant chamaria de “intuição pura” ou “a priori”. É o que permite que os objetos sejam conhecidos. O mundo é concebido a partir dessas três formas puras e inatas do entendimento.

O Mundo só é dado à percepção como representação "O mundo é minha representação", logo, é puro fenômeno. O mundo é a representação proveniente da síntese entre “realidade exterior” e “consciência humana”, ou seja, em seu arcabouço há uma imensa dependência da consciência, é dotado de representação. Para Schopenhauer o mundo não existe como uma realidade exterior absoluta, mas só pode ser conhecido pelo sujeito.

O Pessimismo de Schopenhauer nasce do desdobramento do conceito de vontade que é entendido como sem finalidade e sem objetiva, não provindo de julgamentos históricos, mas sim uma “tese metafísica”. A vontade ocupa um papel quase paradoxal em seu sistema filosófico, uma vez que é “princípio fundamental da natureza” e ao mesmo tempo “irracional e inconsciente”. Embora pessimista, acredita na libertação da conduta humana, é a esse momento que Schopenhauer dedica os livros III e IV de O Mundo como Vontade e Representação.

Pra Schopenhauer a existência humana é um drama e somente a contemplação estética se coloca como uma saída, embora ainda provisória. A contemplação estética conduz o homem a uma contemplação desinteressada das idéias. Assim para Schopenhauer na contemplação de uma obra de arte, da música, da poesia, ou seja, do belo, a dor e o sofrimento são suspensos momentaneamente dando lugar a um momento de ausência desse drama da vida. Na proposta de aliviar o drama humano Schopenhauer discute a “negação da vontade” como único meio real de superação do sofrimento.

No âmbito da contemplação “artística” Schopenhauer elevou a música a um patamar filosófico, para ele “A música é um exercício de metafísica inconsciente no qual o espírito não sabe que está fazendo filosofia”, daí seu caráter irracional da filosofia. A música exprime a essência da Vontade, fazendo da inteligência espectadora da “história de sua própria vontade”. Na frase “viver é sofrer”, Schopenhauer mostra o caráter sofredor do prazer, que por sua vez é apenas um momento fugaz, mostrando assim que quem está disposto a desejar, tem que também se dispor a inquietude da alma, como bem escreveu Santo Agostinho: “O nosso coração está inquieto enquanto não repousar em Deus”. Sobre a arte escreveu Schopenhauer:

É a arte, a obra do gênio. Ela reproduz as idéias eternas, apreendidas mediante pura contemplação, o essencial é permanente de todos os fenômenos do mundo, e conforme a matéria em que ela reproduz, se constitui em artes plásticas, poesia ou música[7]

A parte mais importante da obra de Schopenhauer é de fato a estética. Sua influência é sem dúvida muito vasta sobre músicos, artistas e filósofos, dentre muitos, destacam-se Richard Wagner, principalmente na composição de “Tristão e Isolda” (Tristan und Isolde) de 1857-59, Friedrich Nietzsche, em sua primeira obra escrita com apenas vinte e oito anos, “O nascimento da tragédia”, publicada em 1871, e até mesmo o próprio Freud reconhece sobre si tal influência. A estética tinha pretensões de “aperfeiçoar o conhecimento sensível”. A partir do século XVIII o termo estética (derivado de ai;sqesij, “sensação”), designava todos os conceitos relativos ao belo e as belas-artes.

Por fim, é importante deixar claro que o pensamento de Schopenhauer se encontra na história da filosofia em uma vertente de posição crítica contundente, propondo uma irracionalidade bem desdobrada em suas categorias (muitas retiradas do pensamento de Kant).

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

SCHOPENHAUER, Arthur. "O Mundo como vontade de Representação (livro III), Crítica a Filosofia Kantiana, Pererga e Paralipomena". Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1988.

NOTAS:
[1] Bacharelando em Filosofia pela UFC - Universidade Federal do Ceará (Campus Cariri). Quinto Semestre. 2008.2. E-mail: damasio_ufc@hotmail.com
[2] Originalmente Gdansk cidade Polonesa e que mais tarde passaria à Prússia com o nome de Danzig, e voltaria após a Segunda Guerra Mundial a ser Gdansk.
[3] SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como vontade de Representação (III Parte), Crítica a Filosofia Kantiana, Pererga e Paralipomena, p. 8
[4] Ibid. p. 22.
[5] Ibid. p. 33
[6] Ibid. p. 9.
[7] Ibid. p. 36.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

A TEORIA DA ILUMINAÇÃO (CONHECIMENTO) EM SANTO AGOSTINHO

Marcos Roberto Damásio da Silva[1]


"Quem conhece a verdade, conhece esta luz, e quem a conhece, conhece a Eternidade".
(Santo Agostinho)

Agostinho considera a filosofia a partir das cosmovisões platônica e bíblico-cristã, como solucionadoras do problema da vida. Todo seu esforço está direcionado a questão da alma e circunscrito ao problema de Deus. Tanto Deus como a alma, são questões de extrema importância para a solução integral dos problemas da vida e do conhecimento. Agostinho teve uma formação clássica, foi professor de retórica e se converteu ao cristianismo ouvindo o bispo Ambrósio em Milão. Foi convencido pela forte oratória de Ambrósio e pela capacidade de explicar de forma clara problemas das Escrituras cristãs que para ele eram incompreensíveis. Antes de se converter ao cristianismo Agostinho passou por vários grupos religiosos, entre eles o maniqueísmo (religião persa iniciada por Mani e que trabalha a questão dualista entre o Bem e o Mal, respectivamente Deus e o Diabo), mas que nunca encontrou descanso para seus problemas espirituais.


É impossível falar de Agostinho sem remeter-se a fé cristã. Agostinho é figura preeminente do cristianismo e do ensino teológico e filosófico a mais de 15 séculos. Por outro lado, não se pode negar que os diálogos com a cultura clássica, iniciada com Filon, trouxeram profundas mudanças na forma de pensar dos cristãos e das comunidades ocidentais pós séculos II e III. Deve-se aos padres da igreja que tanto se dedicaram na elaboração de textos a respeito da fé e da revelação divina a fundamentação teórica e moral desse período que ficou conhecido como Patrística. A Patrística é o momento de uma “filosofia cristã” que segue o período neo-testamentário e caracteriza-se por demonstrar uma versão cristã daquilo que os gregos haviam buscado desde o início. Isso se resume na frase de Justino, o Mártir, em relação ao cristianismo, chamando-o de “a verdadeira filosofia”. (GONZÁLES, Justo L., Uma História Ilustrada do Cristianismo: A Era dos Mártires, p. 87).


É nesse cenário que se destaca de forma muito especial a figura de Aurelius Augustinus (354 - 430), ou como muitos o conhece Santo Agostinho. Foi na tentativa de conciliar fé e razão que Agostinho promoveu de forma harmoniosa elementos da filosofia clássica e os escritos dos padres cristãos que o antecederam, sem esquecer a forte influência do Apóstolo Paulo, o principal expoente da teologia cristã do primeiro século da nossa era.


Falar de conhecimento é algo muito peculiar à modernidade, mas isso não quer dizer que os antigos e os medievais também não se debruçaram sobre tal propósito. Em Agostinho, falar de conhecimento é aproximar a cultura clássica tão largamente expressa no pensamento dos gregos, principalmente Sócrates, Platão e Aristóteles e o cristianismo vigente, forte na época da Patristica e nos próprios escritos de Agostinho. Em meio a efevercência do momento, Agostinho apresenta sua "teoria do conhecimento" (aos moldes platônicos) com uma cisão entre conhecimento proveniente dos sentidos, ou seja, que fornece elementos que são levados à memória e organizado pelo indivíduo e o conhecimento inteligível, que é aquele que só pode ser percebido pela mente humana e somente por meio da reflexão.


É no âmbito da inteligibilidade que Agostinho se aproxima da teoria platônica da Reminiscência. A Reminiscência platônica, ou a anamnésis é a ação de recordar, ou trazer à mente o conhecimento que é inerente a psique humana e que precisa ser lembrada pela reflexão filosófica. A anamnésis é o recordar os entes inteligíveis, os eidos que já existem na psique. Agostinho identifica na "teoria das idéias" de Platão o universo das "idéias divinas". Tais idéias divinas, os homens as recebem de Deus através da iluminação, e, com isso o conhecimento das verdades eternas.


Agostinho, um profundo conhecedor da filosofia clássica, e principalmente da filosofia platônica, reinterpreta a teoria da Reminiscência fazendo nascer sua teoria da Iluminação. Essa doutrina da iluminação divina, responde como o homem recebe de Deus o conhecimento das verdades eternas, ou como diria Platão, as verdades inteligíveis (alétheiai voétai). Dessa forma, o verdadeiro é o que é previamente iluminado pela luz divina, e que é algo extraído da própria alma, mas que está de modo infuso. Pode-se afirmar, no entanto, que a iluminação é a potencia que age no intelecto do homem para se chegar a verdade imutável.


Agostinho não rejeita o conhecimento proveniente das sensações, mas o coloca em um patamar inferior, entendendo o intelecto como superior, mas sendo ambos fonte de conhecimento. É na realidade uma reinterpretação do platonismo. Para ele, assim como para a visão a luz (física) exerce papel fundamental, sem a qual não haveria conhecimento dos objetos sensíveis, do mesmo modo para o conhecimento intelectual é necessário uma luz espiritual, esta, no entanto, proveniente de Deus. Em relação a teoria da anamnésis platônica, permanecem as características fundamentais, mas em Agostinho, para que haja o conhecimento intelectual deve haver uma participação direta da iluminação Divina.


Se para Platão o conhecimento é o resultado de uma reflexão dialética, de uma ascese espiritual, para Agostinho é pura graça divina, não negando o carater filosófico que é a reflexão. Esta por sua vez, é alcançada por uma vida de piedade e de temor a Deus, afirma agostinho que o atingir essa iluminação não é tarefa para todos os homens mas sim para aqueles que se voltam a Deus e recebe Cristo como o mediador desse processo. Embora essa mediação tenha sido afetada pelo pecado original, ela não foi de completamente anulada, segundo Agostinho interpreta o Apóstolo Paulo, é a graça divina que auxilia o homem em sua ascensão ao mundo espiritual, onde ele pode ter contato com os entes do conhecimento puro.


Esse resgate do platonismo, é senão uma afirmação neoplatônica, influencia de Plotino, ou seja, a afirmação de um conhecimento das idéias, dos arquétipos eternos contidos na mente de Deus e que são doadores de toda a realidade sensível. O centro da questão do conhecimento na filosofia de Agostinho é o interesse pelos problemas de Deus e da alma que durante toda Idade Média permaneceram como questões centrais da metafísica até o aparecimento do empirismo e da metafísica kantiana.


Agostinho passa pela tradição filosófica como um pensador de extrema influência, tanto para a teologia cristã como para o pensamento filosófico européia. Filósofos como Schopenhauer, Kierkegaard, Wittgenstein, Albert Camus, Hannah Arendt e até o próprio Nietzsche no que diz respeito a questão da vontade humana largamente expressa em sua ética, tiveram contato com Agostinho. Também grandes Teólogos tais como Tomás de Aquino, Martinho Lutero, João Calvino, Karl Barth e uma centena de teólogos contemporâneos principalmente os Calvinistas e Reformadores, como também quase toda a teologia católica foram buscar nos escritos do bispo de Hipona uma fundamentação madura e capaz de responder tanto aos intelectuais como aos leigos.


NOTA:

[1] Bacharelando em Filosofia Pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

sábado, 6 de setembro de 2008

DA SUPERFÍCIE
Dr. Luiz Manoel Lopes[1]

Eu sou porque ela é
Ela é porque eu sou
Somos de graça
A superfície está em branco
Se com um gesto a toco,
Eu sou tocado
(Amílcar de Castro)

Quando dizemos que algo é superficial expressamos nossos preconceitos; a profundidade parece ser mais importante que a superfície, pelo menos é o que os nossos hábitos e julgamentos, acerca da vida, nos indicam. É comum alguém dizer: “que coisa profunda foi dita por fulano”. Tal exemplo, esclarece bem o que entendemos por superficial: nada mais do aquilo que é de pouca profundidade. O nosso contato com o mundo dá-se através das superfícies das coisas; nós estamos diante de nossa superfície como da superfície do mundo. Não somos tolos a ponto de esquecer que possuímos uma profundidade. O ponto de contato com a superfície do mundo, com as múltiplas superfícies que o constituem, dá-se onde o habitamos. Quando, por exemplo, escrevo, este texto, experimento um espetáculo de superfícies que se entrelaçam. O quiasma, do qual Merleau-Ponty nos fala, aparece como um fenômeno onde vários componentes misturam-se: o branco da folha de papel; o escorrer das letras sobre o liso; a tinta vermelha que tinge as letras; a sombra de minha mão vagando na tez do papel; a minha pele que sente a maciez da folha. Há uma composição durante este ato no qual ouço cantos fugidios de pássaros e o tictac do relógio. O pensamento e a linguagem entremeados em planos sem espessura. Talvez haja proximidade com aquilo que o escultor Amílcar de Castro nos apresenta em seu ato de criar. A folha de papel, sendo bi-dimensional, possui um elo com o material que ele nos fala:

É de chapa de ferro
De chapa porque pretendo, partindo da superfície
Mostrar o nascimento da terceira dimensão
De ferro porque é necessário
É natural de Minas, está ao alcance das mãos
Todo mundo sabe trabalhar em ferro
A superfície é domada – é partida e vai
sendo dobrada
É quando, e por fatalidade, o espaço se
integra, criando o não previsto
É pura surpresa
É como um gesto inesperado
Um gesto espontâneo
Espontâneo como se fosse o primeiro
Aquele que fundamenta a comunhão
com o futuro
A escultura que faço é uma pesquisa
de origem da própria escultura
Por isso é simples
descobre a força do que é original
Sol de muito tempo
entre noites dormindo
acorda ilumina e ascende
e é força e é fogo e é ferro
Verbo silêncio vivo.
Criador das montanhas
E fundador de um reino onde a
Palavra é inútil
[2]

Na superfície a escultura e a escritura se entrelaçam; naquela, o nascimento da terceira dimensão; nesta, a germinação de múltiplas direções de tempo. A superfície vegetal da folha contrai a tinta, o tempo intensa e ritmicamente toca o leitor.

Quando nos embriagamos com um movimento de vento nas folhagens, com um gesto, experimentamos rápidos momentos de êxtase. A nossa percepção altera-se, sentimos vibrações inusitadas e começamos por indagar sobre a criação desses momentos fugazes. Há a criação desses momentos, mas não sabemos como foram criados. Os artistas conseguem transferir esses processos de criação para as superfícies mais estranhas libertando aquilo que estava aprisionado no fundo das coisas. Na folha de papel em branco, que começa por ser tingida, a superfície vibra permitindo que o leitor experimente várias dimensões de tempo. Há como que uma transmutação do espaço em tempo. O processo de libertação de algo que percorre a superfície, porém que não conseguimos ver, é uma maneira de tirar a nossa percepção da paralisia diante das coisas.

A superfície, a cortina, o tapete, o casaco eis onde o Cínico e o Estóico se instalam e aquilo de que se cercam. O duplo sentido da superfície, a continuidade do avesso e do direito substituem a altura e a profundidade. Nada atrás da cortina, salvo misturas inomináveis. Nada acima do tapete, salvo o céu vazio.[3]

O pensamento, em sua relação com a superfície, possui o sentido dos acontecimentos que envolvem as coisas. A filosofia – que possui como elemento o conceito – ganha a leveza dos efeitos flutuantes que insinuam-se no limites das coisas. Os conceitos não são adquiridos através de classificações das formas de coisas semelhantes, mas pela fina película que as envolvem. Quando a maçã cai, o cair acontece na superfície que a limita e expressa-se através da linguagem. O sentido, como a expressão do que acontece na superfície do mundo, não é um processo mental ou psicológico, nem uma propriedade objetiva das coisas. Não é preciso a tortura de retornar para a interioridade subjetiva: a vida acontece na superfície, “o mais profundo é a pele”.

O sentido aparece e atua na superfície, pelo menos se soubermos convenientemente, de maneira a formar letras de poeira ou como um vapor sobre o vidro que o dedo pode escrever.[4]

A ressonância entre filosofia e escultura resulta no cântico à tênue camada que separa a vida em dentro e fora. O motivo maior deixa de ser o mergulho, nas regiões mais profundas, passando a ser o quase espesso.

Quando corto e dobro
uma chapa de ferro
[ou somente corto]
pretendo
abrir um espaço
ao amanhecer na matéria bruta
É luz que vela e revela
a comunhão do opaco
com o espaço dos astros
espaço
que descobre o renascer
redimindo a matéria pesada
na intenção de voar.
[5]

Na arte e na filosofia contemporânea experimentamos um esvaziamento; não mais o grave e pesado, mas sim a sutileza da superfície. Os acontecimentos ocorrem no vazio, preenchendo-o de novidades, fazendo-nos experimentar que viver consiste em criar novos modos de viver.

Artigo gentilmente cedido pelo autor, Dr. Luiz Manoel Lopes, (Revista Eletrônica Print by UFSJ)

NOTAS:
[1] Possui graduação em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1994), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (2002) e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (2006). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Ceará - Campus Cariri. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia, atuando principalmente no seguinte tema: acontecimento, campo transcendental e as sínteses disjuntivas em Deleuze; a duração em Bergson; os objetos impossíveis em Meinong; as proposições em si em Bolzano.
[2] Amílcar de Castro, Depoimentos, Belo Horizonte, Suplemento Literário 90, 2002.
[3] Gilles Deleuze, Lógica do Sentido, tradução: Luiz Roberto Salinas Fortes, São Paulo, Perspectiva, 1974, p.136
[4] Idem, ibdem, p.136.
[5] Amílcar de Castro, Corte e dobra, Belo Horizonte, Suplemento Literário 90, 2002, p.12.


quinta-feira, 17 de julho de 2008

CONCEITO DE INTENCIONALIDADE
NA FILOSOFIA HUSSERLIANA



Marcos Roberto Damásio da Silva[1]


RESUMO:
O presente artigo busca apresentar de forma clara e objetiva o conceito de intencionalidade na filosofia de Edmund Husserl. O termo é de certa forma um resgate utilizado pelo seu professor de filosofia em Viena Franz Brentano. Mas não só isso é também uma reutilização do conceito de intentio usado pelos escolásticos. O texto também é resultado de uma exigência à cadeira de Fenomenologia ministrada pelo Professor Doutor em filosofia Luiz Manoel Lopes, na Universidade Federal do Ceará, Campus Cariri, 2008.1.

Palvras-Chave: Fenomenologia, Intencionalidade, Consciência

RESUMÉ:
Le présent article presente de forme clair et objetive le concept d’intentionnalité en la philosophie de Edmund Husserl. Le terme c'est de certain forme un sauvetage utilisé par son enseignant de philosophie à Vienne Franz Brentano. Mais cela n'est pas aussi une réutilisation du concept d'intentio usé par les scolastiques. Le texte c’est aussi le résultat d’une exigence en matière Phenomenologie donné par l'Enseignant Docteur dans philosophie Luiz Manoel Lopes, na Universidade Federal do Ceará, Campus Cariri, 2008.1.

Mots-clé: Phénoménologie, Intentionnalité, Consciênce

INTRODUÇÃO
O presente artigo versará sobre a noção de Intencionalidade no pensamento do filósofo alemão Edmund Husserl e projetar-se-á através das seguintes obras: “Meditations Cartésiennes”, do próprio Husserl; “Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica”; “A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico”, ambas de André de Muralt, filósofo suíço especialista em fenomenologia husserliana. Também parte do pressuposto de que a fenomenologia não é uma ciência na área da psicologia, mas sim uma filosofia, dos objetos puros, semelhante (e apenas semelhante) ao idealismo platônico.
Filósofo alemão e de origem judaica, Edmund Gustav Albrecht Husserl, viveu de 1859 a 1938. Nascido na cidade alemã de Prossnitz, hoje Prostejov, na República Checa. Estudou além de filosofia, física, matemática e astronomia nas universidades alemãs de Leipzig, Berlim, e Viena, doutorando-se em filosofia no ano de 1882, com a seguinte tese: Beiträge zur Theorie der Variationsrechnung (Contribuição para a teoria do cálculo de variáveis). Em Viena estudou com o filósofo e psicólogo alemão Franz Brentano (1838-1917). Também nessa cidade Husserl entrou em contato com a fé luterana e se converteu em 1886 ao cristianismo, vindo a casar um ano depois com Malvine Steinschneider. Husserl faleceu em abril de 1938 e suas cinzas foram enterradas no cemitério em Günterstal, perto de Freiburg.
O pensamento Husserl a semelhança ao de Kant em seu tempo, também pretende salvar a metafísica das pretensões da ciência que empreendia eliminar tudo que não fosse dado empírico passivo de experimentações. O avassalador empirismo britânico encabeçado por Francis Bacon (1561-1626) e que teve seu ápice na exposição filosófica de David Hume (1711-1776), parecia capaz de mostrar-se firme mesmo em meio a insistente permanência da mais nova ciência “dos atos psíquicos”, nascia assim o psicologismo que é de certa forma a influência do empirismo lockeano sobre a filosofia, com isso, "reduzindo" a filosofia a uma espécie de psicologismo científico fortemente ligado ao positivismo.
Husserl, em reação a teoria do conhecimento produzida até seu tempo intenta em dá importância ao que se passa pela experiência da consciência do indivíduo através de uma descrição precisa do fenômeno, ou seja, de um objeto do conhecimento imediato. Husserl trabalha em sua filosofia conceitos como noema, nóesis, epoché a fim de investigar as operações da consciência através do que ele denominou de “redução fenomenológica”, a epoché, ou seja, o ato de pôr entre parênteses toda a existência empírica do mundo sensível. O projeto fenomenológico husserliana influenciou importantes correntes da filosofia contemporânea, tais como a ontologia de Martin Heidegger, e o existencialismo de Maurice Merleau-Ponty e de Jean-Paul Sartre.
O que de fato interessará a Husserl é a formulação de um método, o qual ele denominou de “Método Fenomenológico” e que somente em 1913 foi explicitado em suas Ideen zu einer reinen Phänomenologie (Idéias relativas a uma fenomenologia pura). Nessa obra de fundamental importância para a filosofia husserliana, a fenomenologia ganha propulsão e conotação de uma “philosophia prima”, tornando-se manifestas suas finalidades idealistas. Finalidades estas que foram mais tarde desenvolvidas nas seguintes obras: Formale und Transzendentale Logik (Lógica formal e transcendental) de 1929 e Erfahrung und Urteil (Experiência e Juízo) publicada dez anos mais tarde. O “Método Fenomenológico” cria sustentáculos firmes para a filosofia, pois para isso rompe decisivamente com os métodos dedutivo fruto da filosofia desde Aristóteles até o fim da Idade Média com a apropriação do pensamento aristotélico pelos escolásticos, e com o empírico, responsável pela negação do metafísico desde Guilherme de Occam, Bacon e Hume. Mas, têm em seu arcabouço pretensões em mostrar o que é facultado e em esclarecê-lo. O “Método Fenomenológico” não é deduzido a partir de princípios nem demonstrado por leis, mas é na realidade a consideração do imediato, ou seja, do que está diante da consciência e que tende para o objetivo.


A INTENCIONALIDADE HUSSERLIANA

Antes de uma apressada conceituação do que vem a ser intencionalidade na filosofia de Husserl, primeiro se faz necessário fazer alguns acenos sobre o conceito de fenomenologia no pensamento desse filósofo de extrema importância para contemporaneidade. À guisa de introdução, é apropriado afirmar que a fenomenologia sempre esteve presente em toda tradição filosófica
[2], sendo no entanto, sistematizada por Husserl e utilizada como método filosófico. Etimologicamente o termo deriva de duas palavras de origem gregas, phainomenon e logos. Dessa forma o conceito de fenomenologia é usado por Husserl em seu sentido original, uma “ciência dos fenômenos”, sendo que nesse caso o phainestai, é o que aparece para a consciência..
A fenomenologia husserliana é o método para apreender a essência plena das coisas mesmas (o que Platão introduziu na história da filosofia como eidos
[3]). Portanto, trata-se de uma investigação criteriosa dos objetos dados a priori que se apresentam na consciência enquanto inteligibilidade. Dessa feita, para Husserl, os objetos ideais estão classificados de forma preponderante em relação aos objetos da sensibilidade. Uma importante observação feita pelo filósofo existencialista Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) é de muita valia para compreensão do projeto fenomenológico de Husserl. Afirma ele que a fenomenologia é: “uma reabilitação ontológica do sensível”[4]. Logo, já se pode perceber que a fenomenologia nasce com perspectivas ontológicas rompendo com toda e qualquer pretensão psicológica[5].
Se para Husserl a fenomenologia é um método que visa encontrar os fenômenos puros da consciência, cabe a ele descobrir um conceito mediador, dinâmico para sua filosofia. É assim que nasce a apropriação da intencionalidade husserliana. Husserl retoma de seu professor de filosofia dos tempos em que estudara em Viena, Franz Brentano o conceito de intencionalidade (intentio
[6]), que por sua vez foi buscar o termo nos medievais, principalmente na escolástica. Para Husserl a intencionalidade é a forma “apropriada de ser da consciência”, é nesse sentido que se diz que “não há consciência que não esteja em ato, dirigida para um determinado objeto”. É a consciência sempre intencionada a algo. Já os objetos só têm sua existência garantida enquanto adequados a consciência do sujeito que o capta:

“A palavra intencionalidade não significa outra coisa senão essa característica geral da consciência de ser consciência de alguma coisa, de implicar, na sua qualidade de cogito, o seu cogitatum em si mesmo”[7].
A proposta husserliana de intencionalidade torna-se inovadora no tocante, não só pela crítica ao psicologismo, mas também em dar uma nova conotação ao termo. Desde os medievais o conceito já era utilizado, primeiro no âmbito da moral, mas, posteriormente, foi também aplicado a gnosiologia, até que Franz Brentano reutiliza-o na fundamentação de sua Psicologia do Ato, conceito esse que propõe que o “fenômeno psíquico” se estabeleça não como conteúdo, mas sim como ação. A complexidade dessa filosofia fenomenológica se dá via heranças das escolas medievais e modernas, pois desde Tomás de Aquino, Duns Scot, Suárez, passando por Descartes e Kant até a apropriação do psicologismo brentaniano é um amealhado de significados e que culminam no brilhantismo do mestre de Freiburg. O que Husserl na realidade faz é empreender o retorno do intentio, e reapresentá-lo como inseparável da ação do conhecimento:

“Pertence à essência das vivências de conhecimento (Erkentniserlebnisse) ter uma intentio, significar alguma coisa, referir-se a uma objetividade”.[8]
André de Muralt identifica uma complicação para a compreensão da noção de intencionalidade adquirida dos escolásticos, pois tal noção é retirada de uma “significação principalmente moral”[9]. O que Muralt está dizendo é observável, por exemplo, na noção de intentio encontrada em Tomás de Aquino (1225-1274), onde a intenção é o desejo adquirido potencialmente, ou seja, o objeto desejado (nesse caso moral) não fora ainda adquirido realmente, mais apenas em potência na mente de quem deseja, já o possui. A intenção deseja possuir o objeto, deseja-se concluir o que em potência já está na consciência, é uma constante busca pelo télos da intenção. Nesse debate, tomou-se outro rumo a questão, os escolásticos levaram a discussão para o campo da gnosiologia, entendendo que “também a inteligência tende para um objeto”[10].
Embora a pergunta sobre o que é conhecimento seja basicamente moderna, isso é, aparece como ruptura com a questão ontológica iniciada pela filosofia pré-socrática, não se pode negar que o conhecimento sempre constitui o objeto mais estimado do pensamento filosófico em todo o período da história da filosofia. Se para Platão conhecimento é “uma crença verdadeira e justificada”, para os escolásticos o conhecimento é o resultado da síntese entre objeto e potência. Ou seja, “da apreensão intencional de uma realidade e sua conseguinte expressão”. Isso equivale afirmar que o sujeito conhece por intermédio do intelecto ou por viés sensitivo, mas para isso deve haver um objeto que é conhecido pelo sujeito. Nas palavras de Tomás de Aquino “A memória é o tesouro e o lugar de conservação das imagens”[11]. Para tal elucidação, recorro-me mais uma vez a Muralt:
“O conhecimento apreende seu objeto nela, incorpora-se a ela e lhe dá uma existência imanente diferente da existência real, e é nessa existência imanente, de algum modo ideal, que ela se completa a partir de agora. A intencionalidade torna-se, portanto, uma tendência da consciência para a representação e, como esta representa o objeto, a consciência é remetida ao objeto que ela não possui realmente.”[12]
Aqui, salta-nos aos olhos a sutil diferença entre a intencionalidade moral e a intelectual ou cognoscível para os medievais. Enquanto que o ato moral inclinado pela volição humana atinge um objeto real, o intelectual chega apenas ao conceito ou a representação na mente, ou seja, uma tendência cognoscível. Nesse ínterim, salva-se a posse imediata de Deus. De Deus só se pode obter uma representação não sensível, logo, só se atinge o conceito. Tomás de Aquino resolve essa problemática alegando que o conceito como finalidade do ato cognoscível é inquestionavelmente a “representação do objeto intencional”, e somente através do conceito a inteligência atinge o objeto mesmo, ou seja, na essência.
Muralt aborda ainda mais duas escolas medievais em busca de clarificar o conceito de intencionalidade, são: a escola scotista e o pensamento de Suaréz
[13]. Esses dois pensamentos não serão abordados aqui nesse artigo por questão de delimitação do trabalho e por reconhecer a preponderância do pensamente tomista em relação aos demais. Mas, para mais informações poder-se-á consultar a obra de André de Muralt, “A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico. Trad. Paula Martins. São Paulo: Editora 34, 1998.”.
Afastando-se um pouco dos medievais, chega-se ao fecundo solo da intencionalidade propriamente husserliana em sua forma plenamente filosófica. Para tal, Husserl denomina de “redução transcendental” a aplicação do “método fenomenológico” à consciência pura (o sujeito). Aqui se faz mais clara a noção de intencionalidade. Por “redução transcendental”, também conhecida como “redução eidética”, conceito trabalhado por Husserl até o final de sua vida, e que ficara inacabado, e, talvez por isso não ficou tão claro para seus estudiosos, trata-se do ato de descartar o desnecessário, sair do existir de fato (Dasein) para a essência da existência (Wesen). Husserl elevou a fenomenologia a um patamar superior até então ocupado, ocupando-se apenas dos fenômenos puros da consciência transcendental. Com essa elevação da fenomenologia enquanto filosofia fenomenológica, Husserl queria atingir uma metodologia perfeita para a filosofia. Seu intuito era garantir a certeza absoluta.

CONCLUSÃO

A partir da noção de intencionalidade husserliana é possível identificar a abrangência que seus discípulos deram ao termo na tentativa de expandir a noção à diversas áreas do conhecimento. O filósofo suíço e especialista em fenomenologia husserliana, André de Muralt, em sua obra já citada, “A Metafísica do Fenômeno” cita apenas dentre os franceses três autores que se utilizaram da “filosofia fenomenológica” de Husserl e disseminaram-na.
“Para citar apenas os autores franceses: Merleau-Ponty na Phénoménologie de la perception, Sartre em L’être et le néant, Dufrenne na Phénoménologie de la expérience esthétique”[14].
Pode-se também incluir entre os franceses os filósofos alemães como Martin Heidegger (1889-1976) e Max Scheler (1874-1928). Ambos deram suas contribuições para a expansão do pensamento fenomenológico e são responsáveis diretos com grande soma de produção intelectual. A fenomenologia ainda é de fato atual e de extrema importância na análise filosófica contemporânea. Fica em aberto a pergunta feita por Muralt, na terceira parte de sua obra A Metafísica do Fenômeno, “O empirismo da escola francesa ou a ontologia heideggeriana, qual é o herdeiro legítimo do mestre de Freiburg?”[15]
A análise da vivência intencional mostra as duas esferas do conceito de intencionalidade desenvolvida por Husserl. Daí se pode concluir que o sujeito é absolutamente indispensável para o objeto, e o objeto como essencialmente dado ao sujeito puro. A existência da realidade não é considerada necessária para o ser da consciência pura – daí a crítica do psicologismo, pois isso prejudicaria a reabilitação do paciente –, mas, por outro lado, o mundo das “coisas” transcendentes depende absolutamente da consciência efetiva. A realidade é absolutamente desprovida de autonomia, é carente do caráter absoluto, é somente aquilo que, “em princípio, não é senão intencional, ciente, algo que mostra-se”.
O que se pode concluir a partir da apropriação da noção de intencionalidade husserliana? Fica evidente que tal noção ocupa lugar central na filosofia de Husserl. Em sua teoria está explícito que o que é “pensado está idealmente no pensamento”
[16], logo, a intencionalidade está arraigada nas raízes da idéia, e é inerente a uma "consciência intencional". Aqui surge claramente a diferença entre os conceitos de Brentano e Husserl. Brentano não chega a fazer menção nem indiretamente a uma "consciência intencional". A utilização por parte de Brentano caracteriza-se essencialmente em diferenciar entre fenômenos psíquicos e fenômeno físicos, essa aplicação é apenas psicológica. Diferente de Husserl que aplica a intencionalidade no âmbito do fenômeno eidético encontrado apenas pela redução eidética.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

HUSSERL, Edmund. Meditations Cartésiennes, Paris: J. Vrin. 1966.

________________. Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Trad. Márcio Suzuki. Prefácio de C.A. Moura. São Paulo: Idéias e
Letras, 2006.

MURALT, André de. A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico. Trad. Paula Martins. São Paulo: Editora 34, 1998.

VINE, W. E. & UNGER, Merril F. & WHITE, William Jr. Dicionário Vine: O Significado Exegético e Expositivo das Palavras do Antigo e do Novo Testamento. Rio de Janeiro. CPAD. 1995. Trad. Luís Aron de Macedo. 1115 p.

NOTAS:
[1] Bacharelando em Filosofia pela UFC - Universidade Federal do Ceará (Campus Cariri). E-mail: damasio_ufc@hotmail.com
[2] Poder-se-á destacar três significados de fenomenologia durante toda a história da filosofia: "teoria das aparências", termo cunhada por Jean-Henri Lambert. Na filosofia de Hegel, em Phänomenologie des Geistes (Fenomenologia do espírito; 1807), onde ele demonstra uma espécie de lógica do conteúdo e uma introdução à filosofia, e em Husserl nas primeiras décadas do século XX, onde ele denota o estudo dos fenômenos em si mesmos. (http://br.geocities.com/sidereusnunciusdasilva/- fenomenologia.htm)
[3] ei=doj, “aquilo que golpeia os olhos, o que é exposto a vista”, significa aparência, forma ou figura externa. Não significa o ato de ver, mas a aparência visível das coisas que são postas. Cf: VINE, W. E. & UNGER, Merril F. & WHITE, William Jr. Dicionário Vine: O Significado Exegético e Expositivo das Palavras do Antigo e do Novo Testamento. Rio de Janeiro. CPAD. 1995. Trad. Luís Aron de Macedo. 1115 p.
[4] M. Merleau-Ponty, Signos, São Paulo. Martins Fontes, 1991, p. 184. (Citado por Maria Edivânia Vicente dos Santos em sua dissertação de mestrado “Ética e corpo próprio em Merleau-Ponty” defendida em 2006 na Universidade Federal de Pernambuco - UFPB).
[5] Husserl critica o Psicologismo no primeiro volume do seu “Logische Untersuchungen“(Investigações lógicas) de 1900-01com o título Prolegomena,
[6] Intentio tem ligações com “finalidade” ou “fim visado” Foi em São Tomás de Aquino que Brentano encontrou o termo intentio.
[7] "Le mot intentionalité ne signifie rien d'autre que cette particularité foncière et générale qu'a la conscience d'être conscience de quelque chose, de porter, en sa qualité de cogito, son cogitatum en elle-même". HUSSERL, Edmund. Meditations Cartésiennes, Paris: J. Vrin. p. 28
[8] Citado por Nelson Ernesto Coelho Junior da obra: Husserl, Edmund. Die Idee der Phänomenologie. Em: Husserliana, La HaH Haye: Martinus Nijhoff. 1950.
[9] MURALT, André de. A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico. p. 63.
[10] Op. Cit. p. 64.
[11] AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, I, q.29, 7.
[12] MURALT, André de. A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico. p. 65.
[13] Francisco Suárez, teólogo jesuíta espanhol que nasceu em 5 de Janeiro de 1548 em Granada, e morreu em 25 de Setembro de 1619 em Lisboa. Estudou Latim e Direito de 1562 a 1564 em Salamanca. Estudo filosofia no noviciado 1566-70 e Teologia em Salamanca.
[14] Op. Cit. p. 80.
[15] Op. Cit. p. 63.
[16] "Le pensé est idéalement présent dans la pensée”. (Lévinas - En découvrant l'existence avec Husserl et Heidegger, Librairie Philosophique J. Vrin, Paris)