segunda-feira, 22 de setembro de 2008

A TEORIA DA ILUMINAÇÃO (CONHECIMENTO) EM SANTO AGOSTINHO

Marcos Roberto Damásio da Silva[1]


"Quem conhece a verdade, conhece esta luz, e quem a conhece, conhece a Eternidade".
(Santo Agostinho)

Agostinho considera a filosofia a partir das cosmovisões platônica e bíblico-cristã, como solucionadoras do problema da vida. Todo seu esforço está direcionado a questão da alma e circunscrito ao problema de Deus. Tanto Deus como a alma, são questões de extrema importância para a solução integral dos problemas da vida e do conhecimento. Agostinho teve uma formação clássica, foi professor de retórica e se converteu ao cristianismo ouvindo o bispo Ambrósio em Milão. Foi convencido pela forte oratória de Ambrósio e pela capacidade de explicar de forma clara problemas das Escrituras cristãs que para ele eram incompreensíveis. Antes de se converter ao cristianismo Agostinho passou por vários grupos religiosos, entre eles o maniqueísmo (religião persa iniciada por Mani e que trabalha a questão dualista entre o Bem e o Mal, respectivamente Deus e o Diabo), mas que nunca encontrou descanso para seus problemas espirituais.


É impossível falar de Agostinho sem remeter-se a fé cristã. Agostinho é figura preeminente do cristianismo e do ensino teológico e filosófico a mais de 15 séculos. Por outro lado, não se pode negar que os diálogos com a cultura clássica, iniciada com Filon, trouxeram profundas mudanças na forma de pensar dos cristãos e das comunidades ocidentais pós séculos II e III. Deve-se aos padres da igreja que tanto se dedicaram na elaboração de textos a respeito da fé e da revelação divina a fundamentação teórica e moral desse período que ficou conhecido como Patrística. A Patrística é o momento de uma “filosofia cristã” que segue o período neo-testamentário e caracteriza-se por demonstrar uma versão cristã daquilo que os gregos haviam buscado desde o início. Isso se resume na frase de Justino, o Mártir, em relação ao cristianismo, chamando-o de “a verdadeira filosofia”. (GONZÁLES, Justo L., Uma História Ilustrada do Cristianismo: A Era dos Mártires, p. 87).


É nesse cenário que se destaca de forma muito especial a figura de Aurelius Augustinus (354 - 430), ou como muitos o conhece Santo Agostinho. Foi na tentativa de conciliar fé e razão que Agostinho promoveu de forma harmoniosa elementos da filosofia clássica e os escritos dos padres cristãos que o antecederam, sem esquecer a forte influência do Apóstolo Paulo, o principal expoente da teologia cristã do primeiro século da nossa era.


Falar de conhecimento é algo muito peculiar à modernidade, mas isso não quer dizer que os antigos e os medievais também não se debruçaram sobre tal propósito. Em Agostinho, falar de conhecimento é aproximar a cultura clássica tão largamente expressa no pensamento dos gregos, principalmente Sócrates, Platão e Aristóteles e o cristianismo vigente, forte na época da Patristica e nos próprios escritos de Agostinho. Em meio a efevercência do momento, Agostinho apresenta sua "teoria do conhecimento" (aos moldes platônicos) com uma cisão entre conhecimento proveniente dos sentidos, ou seja, que fornece elementos que são levados à memória e organizado pelo indivíduo e o conhecimento inteligível, que é aquele que só pode ser percebido pela mente humana e somente por meio da reflexão.


É no âmbito da inteligibilidade que Agostinho se aproxima da teoria platônica da Reminiscência. A Reminiscência platônica, ou a anamnésis é a ação de recordar, ou trazer à mente o conhecimento que é inerente a psique humana e que precisa ser lembrada pela reflexão filosófica. A anamnésis é o recordar os entes inteligíveis, os eidos que já existem na psique. Agostinho identifica na "teoria das idéias" de Platão o universo das "idéias divinas". Tais idéias divinas, os homens as recebem de Deus através da iluminação, e, com isso o conhecimento das verdades eternas.


Agostinho, um profundo conhecedor da filosofia clássica, e principalmente da filosofia platônica, reinterpreta a teoria da Reminiscência fazendo nascer sua teoria da Iluminação. Essa doutrina da iluminação divina, responde como o homem recebe de Deus o conhecimento das verdades eternas, ou como diria Platão, as verdades inteligíveis (alétheiai voétai). Dessa forma, o verdadeiro é o que é previamente iluminado pela luz divina, e que é algo extraído da própria alma, mas que está de modo infuso. Pode-se afirmar, no entanto, que a iluminação é a potencia que age no intelecto do homem para se chegar a verdade imutável.


Agostinho não rejeita o conhecimento proveniente das sensações, mas o coloca em um patamar inferior, entendendo o intelecto como superior, mas sendo ambos fonte de conhecimento. É na realidade uma reinterpretação do platonismo. Para ele, assim como para a visão a luz (física) exerce papel fundamental, sem a qual não haveria conhecimento dos objetos sensíveis, do mesmo modo para o conhecimento intelectual é necessário uma luz espiritual, esta, no entanto, proveniente de Deus. Em relação a teoria da anamnésis platônica, permanecem as características fundamentais, mas em Agostinho, para que haja o conhecimento intelectual deve haver uma participação direta da iluminação Divina.


Se para Platão o conhecimento é o resultado de uma reflexão dialética, de uma ascese espiritual, para Agostinho é pura graça divina, não negando o carater filosófico que é a reflexão. Esta por sua vez, é alcançada por uma vida de piedade e de temor a Deus, afirma agostinho que o atingir essa iluminação não é tarefa para todos os homens mas sim para aqueles que se voltam a Deus e recebe Cristo como o mediador desse processo. Embora essa mediação tenha sido afetada pelo pecado original, ela não foi de completamente anulada, segundo Agostinho interpreta o Apóstolo Paulo, é a graça divina que auxilia o homem em sua ascensão ao mundo espiritual, onde ele pode ter contato com os entes do conhecimento puro.


Esse resgate do platonismo, é senão uma afirmação neoplatônica, influencia de Plotino, ou seja, a afirmação de um conhecimento das idéias, dos arquétipos eternos contidos na mente de Deus e que são doadores de toda a realidade sensível. O centro da questão do conhecimento na filosofia de Agostinho é o interesse pelos problemas de Deus e da alma que durante toda Idade Média permaneceram como questões centrais da metafísica até o aparecimento do empirismo e da metafísica kantiana.


Agostinho passa pela tradição filosófica como um pensador de extrema influência, tanto para a teologia cristã como para o pensamento filosófico européia. Filósofos como Schopenhauer, Kierkegaard, Wittgenstein, Albert Camus, Hannah Arendt e até o próprio Nietzsche no que diz respeito a questão da vontade humana largamente expressa em sua ética, tiveram contato com Agostinho. Também grandes Teólogos tais como Tomás de Aquino, Martinho Lutero, João Calvino, Karl Barth e uma centena de teólogos contemporâneos principalmente os Calvinistas e Reformadores, como também quase toda a teologia católica foram buscar nos escritos do bispo de Hipona uma fundamentação madura e capaz de responder tanto aos intelectuais como aos leigos.


NOTA:

[1] Bacharelando em Filosofia Pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

sábado, 6 de setembro de 2008

DA SUPERFÍCIE
Dr. Luiz Manoel Lopes[1]

Eu sou porque ela é
Ela é porque eu sou
Somos de graça
A superfície está em branco
Se com um gesto a toco,
Eu sou tocado
(Amílcar de Castro)

Quando dizemos que algo é superficial expressamos nossos preconceitos; a profundidade parece ser mais importante que a superfície, pelo menos é o que os nossos hábitos e julgamentos, acerca da vida, nos indicam. É comum alguém dizer: “que coisa profunda foi dita por fulano”. Tal exemplo, esclarece bem o que entendemos por superficial: nada mais do aquilo que é de pouca profundidade. O nosso contato com o mundo dá-se através das superfícies das coisas; nós estamos diante de nossa superfície como da superfície do mundo. Não somos tolos a ponto de esquecer que possuímos uma profundidade. O ponto de contato com a superfície do mundo, com as múltiplas superfícies que o constituem, dá-se onde o habitamos. Quando, por exemplo, escrevo, este texto, experimento um espetáculo de superfícies que se entrelaçam. O quiasma, do qual Merleau-Ponty nos fala, aparece como um fenômeno onde vários componentes misturam-se: o branco da folha de papel; o escorrer das letras sobre o liso; a tinta vermelha que tinge as letras; a sombra de minha mão vagando na tez do papel; a minha pele que sente a maciez da folha. Há uma composição durante este ato no qual ouço cantos fugidios de pássaros e o tictac do relógio. O pensamento e a linguagem entremeados em planos sem espessura. Talvez haja proximidade com aquilo que o escultor Amílcar de Castro nos apresenta em seu ato de criar. A folha de papel, sendo bi-dimensional, possui um elo com o material que ele nos fala:

É de chapa de ferro
De chapa porque pretendo, partindo da superfície
Mostrar o nascimento da terceira dimensão
De ferro porque é necessário
É natural de Minas, está ao alcance das mãos
Todo mundo sabe trabalhar em ferro
A superfície é domada – é partida e vai
sendo dobrada
É quando, e por fatalidade, o espaço se
integra, criando o não previsto
É pura surpresa
É como um gesto inesperado
Um gesto espontâneo
Espontâneo como se fosse o primeiro
Aquele que fundamenta a comunhão
com o futuro
A escultura que faço é uma pesquisa
de origem da própria escultura
Por isso é simples
descobre a força do que é original
Sol de muito tempo
entre noites dormindo
acorda ilumina e ascende
e é força e é fogo e é ferro
Verbo silêncio vivo.
Criador das montanhas
E fundador de um reino onde a
Palavra é inútil
[2]

Na superfície a escultura e a escritura se entrelaçam; naquela, o nascimento da terceira dimensão; nesta, a germinação de múltiplas direções de tempo. A superfície vegetal da folha contrai a tinta, o tempo intensa e ritmicamente toca o leitor.

Quando nos embriagamos com um movimento de vento nas folhagens, com um gesto, experimentamos rápidos momentos de êxtase. A nossa percepção altera-se, sentimos vibrações inusitadas e começamos por indagar sobre a criação desses momentos fugazes. Há a criação desses momentos, mas não sabemos como foram criados. Os artistas conseguem transferir esses processos de criação para as superfícies mais estranhas libertando aquilo que estava aprisionado no fundo das coisas. Na folha de papel em branco, que começa por ser tingida, a superfície vibra permitindo que o leitor experimente várias dimensões de tempo. Há como que uma transmutação do espaço em tempo. O processo de libertação de algo que percorre a superfície, porém que não conseguimos ver, é uma maneira de tirar a nossa percepção da paralisia diante das coisas.

A superfície, a cortina, o tapete, o casaco eis onde o Cínico e o Estóico se instalam e aquilo de que se cercam. O duplo sentido da superfície, a continuidade do avesso e do direito substituem a altura e a profundidade. Nada atrás da cortina, salvo misturas inomináveis. Nada acima do tapete, salvo o céu vazio.[3]

O pensamento, em sua relação com a superfície, possui o sentido dos acontecimentos que envolvem as coisas. A filosofia – que possui como elemento o conceito – ganha a leveza dos efeitos flutuantes que insinuam-se no limites das coisas. Os conceitos não são adquiridos através de classificações das formas de coisas semelhantes, mas pela fina película que as envolvem. Quando a maçã cai, o cair acontece na superfície que a limita e expressa-se através da linguagem. O sentido, como a expressão do que acontece na superfície do mundo, não é um processo mental ou psicológico, nem uma propriedade objetiva das coisas. Não é preciso a tortura de retornar para a interioridade subjetiva: a vida acontece na superfície, “o mais profundo é a pele”.

O sentido aparece e atua na superfície, pelo menos se soubermos convenientemente, de maneira a formar letras de poeira ou como um vapor sobre o vidro que o dedo pode escrever.[4]

A ressonância entre filosofia e escultura resulta no cântico à tênue camada que separa a vida em dentro e fora. O motivo maior deixa de ser o mergulho, nas regiões mais profundas, passando a ser o quase espesso.

Quando corto e dobro
uma chapa de ferro
[ou somente corto]
pretendo
abrir um espaço
ao amanhecer na matéria bruta
É luz que vela e revela
a comunhão do opaco
com o espaço dos astros
espaço
que descobre o renascer
redimindo a matéria pesada
na intenção de voar.
[5]

Na arte e na filosofia contemporânea experimentamos um esvaziamento; não mais o grave e pesado, mas sim a sutileza da superfície. Os acontecimentos ocorrem no vazio, preenchendo-o de novidades, fazendo-nos experimentar que viver consiste em criar novos modos de viver.

Artigo gentilmente cedido pelo autor, Dr. Luiz Manoel Lopes, (Revista Eletrônica Print by UFSJ)

NOTAS:
[1] Possui graduação em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1994), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (2002) e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (2006). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Ceará - Campus Cariri. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia, atuando principalmente no seguinte tema: acontecimento, campo transcendental e as sínteses disjuntivas em Deleuze; a duração em Bergson; os objetos impossíveis em Meinong; as proposições em si em Bolzano.
[2] Amílcar de Castro, Depoimentos, Belo Horizonte, Suplemento Literário 90, 2002.
[3] Gilles Deleuze, Lógica do Sentido, tradução: Luiz Roberto Salinas Fortes, São Paulo, Perspectiva, 1974, p.136
[4] Idem, ibdem, p.136.
[5] Amílcar de Castro, Corte e dobra, Belo Horizonte, Suplemento Literário 90, 2002, p.12.